quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Tristeza - Rubem Alves




Lenita Jankovitz - "Vazio d'alma"  - acrílica sobre tela
Nova Odessa/SP

Hoje quero falar de tristeza. Não me perguntem por que, pois mesmo eu não sei. A tristeza não pede licença, não se explica. Vai chegando de mansinho e espalhando seu perfume de jasmim pelas coisas, até que todas ficam encantadas pela beleza que nela mora. Ficam belas-tristes as nuvens do céu, tristes-belos os bem-te-vis nos galhos das árvores, belos-tristes os objetos silenciosos do meu escritório, e até mesmo o café da manhã fica triste-belo... A tristeza é sempre bela, pois ela nada mais é que o sentimento que se tem ante uma beleza que se perdeu...

Não sei o que a chamou. Teria sido a visão das florestas ardendo, com seus prenúncios de desertos quentes e fins do mundo, os pássaros fugindo para nunca mais voltar? Ou a visita a lugares antigos amados... Ah! Quem ama nunca deveria voltar... Lembro-me dos versos que decorei no Grupo, o poeta visitando paisagens de outros tempos e cadenciando a sua tristeza com um refrão que se repete. “São estes os sítios? São estes... Mas eu o mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera que eu vou...” Até a bem-amada fica à espera quando o corpo tenta recuperar os espaços perdidos. Pois é. Visitei lugares de minha infância lá em Minas, e vi que a casa velha onde morei já não existe e nem a jabuticabeira que reguei e as três paineiras a cuja sombra me assentei. Fiquei ali, diante dessas ausências. E percebo que a tristeza é isto:
estar diante de um espaço onde um dia houve o encontro. Saber, que cedo ou tarde, tudo o que está presente ficará ausente. E tristeza testemunha que o mistério da despedida está gravado em nossa própria carne. “Quem nos desviou assim”, perguntava Rilke, “para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?” Não é esta ou aquela despedida. As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. O que Cecília Meireles dizia de sua avó morta podemos dizer da vida inteira: “ Tudo em ti era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se...” Tristeza é isto, quando o belo e a despedida coincidem. O que revela o nosso próprio segredo, dilacerado entre o belo, que nos tornaria eternamente felizes, e os nossos braços, curtos demais para segurá-lo. 

“E quando nos sentimos mais seguros algo inesperado acontece: um pôr do sol.. E estamos perdidos de novo...” (E. Browning). Mas, que será aquilo que nos põe a perder? A beleza do crepúsculo? Não. Mas a percepção de que a beleza é crepúsculo. Goethe dizia do pôr do sol: “tudo o que está próximo se distancia”. Ao que Borges comente: “Goethe se referia ao crepúsculo, mas também a vida. Aos poucos as coisas vão nos abandonando”. O pôr do sol é triste porque nos conta que somos como ele: infinitamente belo em nossas cores, infinitamente nostálgicos em nossos adeus. 

A tristeza é o espaço entre o belo e o efêmero, de onde nasce a poesia. Não é por acaso que os poetas repetem sempre o mesmo tema. “As nuvens à volta do sol que se põe”, dizia Wordsworth,
“ganham suas cores tristes de um olho que contempla a mortalidade dos homens...” E assim, os poetas vão colocando suas palavras sobre o vazio. Não um vazio qualquer, vazio “pedaço  arrancado de mim”, mutilação no meu corpo. Exercício de saudade; tornar de novo presente um passado que já se foi. “Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto para o filho que já morreu...”

Lembro-me de Álvaro de Campos dizendo da dor que sentia ao ver os navios que se afastavam do cais. “Ah! Todo cais é uma saudade de pedra... Todo atracar, todo largar de navio é – sinto-o em mim como meu sangue – inconscientemente simbólico, terrivelmente ameaçador de significações metafísicas. E, quando o navio larga o cais e se repara de repente que se abriu um espaço entre o cais e o navio, vem-me uma névoa de sentimentos de tristeza que me envolve com uma recordação de uma outra pessoa que fosse misteriosamente minha...” 

E é só agora, Drummond, que compreendo o que você diz no seu poema “Ausência”, onde você afirma não lastimar o vazio. Não deveria ser assim... Acontece que, depois da partida, só fica a ferida que não deseja curar, pois ela traz de novo à memória o belo que uma vez foi. “Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava ignorante, a falta. Hoje não lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim...” Não é estranho isto, que na tristeza more a beleza, e que se encontre aí mesmo um pouco de alegria? É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar.

Brinco com minha tristeza como quem cuida de uma amiga fiel...


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